21 junho, 2009

Quando amar é crime

Todos nós pecamos ao amar. Mal sabemos dar conta de nossos defeitos; barriguinhas salientes e a burlada no sistema. Alguém diz que vai para a academia, e promete entrar na tal forma antes das primeiras flores da primavera. Outros sorriem, meio sem jeito, e até procuram como regularizar situações, documentos e burocracias. Abrimos mão de tudo isso logo ali na esquina, porque bem ou mal, teremos satisfações em troca. Se por coisas simples ou que merecem uma certa dedicação nos perdemos ali e acolá, damos conta de amar?

O outro é sempre aquilo ou aquela coisa, tem borogodó, mas umas manias péssimas, que irritam e irrigam a brancura dos cabelos. Não incondicionalmente, mas amamos sobre condições. O prazer é quem determina o tamanho do amor. Mas tal qual burlar ou se 'desleixar' (porque não acredito fielmente nessa coisa e não achei melhor palavra), amar também é um crime.

Salvo em condições fabulescas - e em algumas delas nem assim - viver em companhia de alguém pressupõe uma lista imensa de afazeres burocráticos, um esforço físico sudoríparo, um dar se receber; aquele que provêm o bem-estar se vê digno de receber uma admiração e submissão sacras, e as aceitam de forma ilusória.

Um homem resolve trocar o trabalho que o enobrece por uma dedicação total àquela que povoa seu íntimo, deseja-o apesar das rugas. Esta dedicação, tão encantadora vista de fora, torna-se a prisão alheia. O sacrifíco, a sacralização do ato ou modo, é e será sempre cobrado. Não obstante, exige-se do outro aquilo que fazemos. Queremos o amor do outro como o amamos. Se temos um ao outro, quem te telefona? Se me deito todos os dias ao seu lado, para quem você precisa contar como foi seu dia?
A necessidade do eu te amo vem da obsessão
desastrosa pela afirmação do injusto eu te basto.

Os amigos falaram tão bem do casal harmonioso, sempre um ao lado do outro, dividindo horas e tarefas, viagens, a educação dos filhos. Do quão dedicado ele era. Bastava colocar o pote de margarina no final e tudo estaria como deveria ser. Um segredo: dentro do pote há víseras e sangue. Ferimentos que nem a perícia consegue enxergar. O instrumento com o qual tanto sangue é produzido não é corto-perfurante ou de fogo. É de sofrimento psicológico, da angustia de tentar alcançar aquilo que o outro quer, e tantas vezes não ser o bastante. É de um jogo de manipulação e aparências, atrás de lágrimas no banheiro e uma necessidade de sair correndo, ver-se livre.

Amar nos torna animais acuados e ameassadores na mais doce palavra. Um grito agressivo em público carrega um amargo rancor de palavras já sabidas e ouvidas no aconchego do lar. E sabem como é a lei dos animais... Darwin já conversou conosco algumas vezes.

Esse crime hediondo que praticamos nos iguala a pequenas e não menos famintas larvas. Nos alimentamos da decomposição da alma, da satisfação secreta de vê-lo tentando, dia após dia, suprir as nossas próprias sensações, do ato egoísta de não reconhecermos a identidade do corpo ao nosso lado. Quando, já cansados de nos entregarmos a uma busca sem objetivo alcançável, explodimos na concessão do amor próprio, deliberamos pela liberdade, e o senhor do engenho se propõe a pagar qualquer preço pelos nossos serviços.

3 comentários:

  1. Não podia ser mais verdade e estar mais bem escrito.

    A perda de individualidade numa relação é uma doença, nem no amor mas puro que temos pelos nosso filhos isso acontece, porque tem que acontecer com pessoas que não dependem de nós?

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  2. Muito massa o texto. Surpresa conhecer Tainá.

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  3. 'A necessidade do eu te amo vem da obsessão
    desastrosa pela afirmação do injusto eu te basto.'

    -- será? quem sabe alguns ainda vão perceber juntos o gosto de sonho & vísceras no pote de margarina; relaxar/tensionar alma e garganta e gritar juntos um meio-ódio que é meio-amor no meio da rua ou da praça, enquanto o último ônibus, a novela das oito, a propaganda do carrão, o cumprimento frouxo e falso, a sensação de meia vida, meia boca, meia morte dão a volta, o dia nasce e uma nova caravana passa? amor reconhecido sim, mas sempre renovado, repartido e dado com loucura e graça? amor de amigos sempre, mas sem tédio e sem pirraça? quem quiser desdenhe, quem desejar, reinvente e faça.

    gostei do seu espaço!

    abs
    Ana Maria

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